João da Silva, Cavaleiro da nobilíssima família do seu apelido, tão antiga em anos, como fecunda em heróis, filho de Aires da Silva, e de Dona Guiomar de Castro, foi Varão excelente em esforço, e aviso, na campanha, e na Côrte. Militou em África, e escola da Nobreza de Portugal naqueles tempos, em que não era costume pôr espada, ou galantear dama, quem não tivesse provado a mão com os mouros, servindo alguns anos naquelas praças, onde pelas durezas da guerra se habilitavam para as branduras do amor. Ditosa idade, em que se prezava pouco a fortuna dos ilustres nascimentos, se lhe faltava o realce das acções ilustres! Tais foram as de João da Silva em duas vezes, que passou àquela guerra; uma, seguindo o estilo dos moços, seus iguais, e levados do seu brio: outra levado do brio, e do obséquio, acompanhando ao Duque de Bragança, Dom Jaime na memorável expedição sobre Azamor. Em ambas conseguiu universais aplausos de prudente, e valeroso. Voltou a Portugal, e entregue aos empregos da Côrte, mereceu as estimações, e agrados delRei Dom Manoel, com tanto extremo, que quando ainda não penteava cans, o nomeou o mesmo Rei por seu Regedor das justiças, cargo de suma reputação, e que se fiava só a idades mui crescidas, sobre grandes qualidades; mas nele se via, e se admirava suprida, com vantagens, a falta dos anos, pela pureza, e integridade dos costumes. Suas eram três máximas prudentíssimas, que foram muito celebradas naqueles tempos, e sempre deviam andar impressa na memória dos homens: Ouvir Missa não gasta tempo: Dar esmola não empobrece: Fazer bem, nunca se perde. Seguindo tão acertados dictames, e outros não menos acertados, se fez um vivo exemplar de virtuosas, e generosas prendas, assim no trato da sua pessoa, e família, como na administração do seu cargo. Observantíssimo das suas obrigações, era um perene, e indispensável preceito, para que todos fizessem as suas.
Em seu tempo, nem houve falta nos Ministros, nem queixas nos litigantes, e se as houve alguma vez, logo eram prontamente emendadas, e satisfeitas. Queixava-se-lhe certo homem, de que um Desembargador lhe detinha um feito, havia dois meses: eram dois meses naquele tempo, grande dilação. Entrando o tal Desembargador na Relação, lhe perguntou o Regedor, se trazia o feito de fulano? Respondeu, que ficava em casa. Ora, mandai-o buscar (lhe disse), e que tragam mil reis para a parte satisfazer os gastos, que tem feito por causa das vossas dilações. Eram naquele tempo mil reis quantia de importância, e logo o Desembargador a exibiu, juntamente com o feito. Propondo-se a ElRei Dom João III que certo homem dava dez mil cruzados para redenção dos cativos, pela absolvição de um crime grave, e mostrando ElRei inclinar-se para a proposta, resistiu constantemente o Regedor, dizendo: Se Vossa Alteza quer vender a justiça por dinheiro, pode-o fazer, como Príncipe soberano que é, porém não, sendo João da Silva Regedor, e assim lhe peço licença para desde logo arrumar o bastão. ElRei o ouviu com grande assombro, e lhe respondeu com igual benignidade, dizendo: João da Silva, fazei o que entenderes, que mais convém ao meu serviço, e à boa administração do vosso cargo. Cortava até por si nas cousas da justiça: pediu a um Escrivão uma devaça, em que se achava compreendido certo parente seu: respondeu-lhe o Escrivão: Senhor, se vossa senhoria me pede a devaça, como Regedor, aí a tem, se como parente de Dom fulano, não lha devo mostrar: parou o Regedor um pouco, e disse: Tendes muita razão, não a quero ver. Apresentando-se-lhe uma provisão de revista, e parecendo-lhe injusta, não a quis admitir: replicavam-lhe, que assim o julgara certo Ministro, que era homem de muitas letras, mas notoriamente conhecido por Cristo novo: Respondeu: Deixai, que esse homem, se meterem o Credo na mão, há de dizer, que é caso de revista. Chamavam-lhe, como por antonomásia, o Regedor, e ele se prezava muito desde título, por ser de grande autoridade, e muito mais por trazer consigo a administração da justiça, em benefício do comum. Disse-lhe um dia o Príncipe Dom João, filho delRei Dom João III.: João da Silva, dizem-me, que tendes feto uma honorífica Capela em São Marcos de Coimbra. Ressentiu-se o bom velho Príncipe lhe faltar com o título costumado, e respondeu: Senhor, para um Fidalgo raso, que não tem Dom, qualquer cousa é muito. Teve ditos mui galantes, e generosos. Indo um dia depois de jantar, falar a ElRei viu, que saia um Fidalgo, chamado de alcunha o Avicena, e que encontrava outro chamado o Bacalhau, que se deteve muito; enrtou o Regedor enfadado de tanto esperar, e disse a ElRei: Senhor, se Avicena disse a Vossa Alteza, que depois de jantar era bom tanto bacalhau, é um ignorante das regras da Medicina; teve dele certo Fidalgo, não sei que queixa, e contando-lhe, que o tal Fidalgo dizia, em tom de ameaço: Que ainda tinha em sua casa a lança, com que seus antepassados haviam morto muitos Mouros em África; respondeu-lhe: Dizei a Dom fulano, que se a lança fora sua, então entenderia eu, que ele falava deveras. Unindo às gentilezas de Cavaleiro às máximas de bom Cristão, trazia muito na memória os espaços imensos da eternidade, os perigos da vida, e os rigores da conta, e regulava os seus procedimentos ao compasso de tão importantes considerações. Muitos anos, antes da morte, fez erigir uma suntuosa Capela para seu enterro, no Mosteiro de São Marcos, de Religiosos de São Jerónimo, junto a Coimbra. Faleceu neste dia [6 de Abril], ano de 1553.
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